Cena 1: Uma servidora
do Detran-RJ, numa blitz (em 2011), parou um veículo que estava sem placa. A
nota fiscal que portava já tinha prazo vencido. O motorista, ademais, não
portava a carteira de habilitação (tudo isso foi reconhecido em sentença da
Justiça). Quem era o motorista? Um juiz de direito. A servidora (que fez uma
dissertação de mestrado sobre ética na administração pública) disse que o carro
irregular deveria ser rebocado. Essa providência absolutamente legal (válida
para todos) foi a causa do quid pro quo armado. Ele queria que um tenente a
prendesse. Este se recusou a fazer isso. Chegaram os PMs (tentaram algemá-la).
A servidora disse: “Ele não é Deus”. O juiz começou a gritar e deu voz de
prisão, dizendo que ela era “abusada” (quem anda com carro irregular, não, não
é abusado). Ela processou o juiz por prisão ilegal. O TJ do RJ entendeu
(corporativamente) que foi a servidora que praticou ilegalidade e abuso
(dizendo que “juiz não é Deus”). Alegação completar da servidora: “Se eu levo
os carros dos mais humildes, por que não vou levar os dos mais abastados?;
Posso me prejudicar porque fiz meu trabalho direito”.
Cena 2: O TJ do RJ
condenou a servidora a pagar R$ 5 mil por danos morais ao juiz “ofendido” em
sua honra (a servidora agiu mesmo sabendo da relevância da função pública por
ele exercida). Diz ainda a sentença (acórdão): “Dessa maneira, em defesa
da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não
ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e
tudo o que ela representa”. “Além disso, o fato de o recorrido se identificar
como Juiz de Direito não caracteriza a chamada “carteirada”, conforme alega a
apelante.” Uma “vaquinha” na internet já arrecadou mais de R$ 11 mil (a
servidora diz que dará o dinheiro sobrante para entidades de caridade). Ela foi
condenada porque disse que “juiz não é Deus” (ou seja: negou ao juiz essa sua
condição). Heresia! Isso significa ofensa e deboche (disse o TJRJ). O CNJ vai
reabrir o caso e apurar a conduta do juiz. Em outra ocasião a mulher de um
“dono do tráfico” no morro também já havia dito para a servidora “Você sabe com
quem está falando?”.
01. Construímos no Brasil uma sociedade hierarquizada e arcaica,
majoritariamente conservadora (que aqui se manifesta em regra de forma
extremamente nefasta, posto que dominada por crenças e valores equivocados),
que se julga (em geral) no direito de desfrutar de alguns privilégios,
incluindo-se o de não ser igual perante as leis(nessa suposta
“superioridade” racial ou socioeconômica também vem incluída a impunidade,
que sempre levou um forte setor das elites à construção de uma organização
criminosa formada por uma troika maligna composta de políticos e outros agentes
públicos + agentes econômicos + agentes financeiros, unidos em parceria
público-privada para a pilhagem do patrimônio do Estado – PPP/PPE). Continuamos
(em pleno século XXI) a ser o país atrasado do “Você sabe com quem está
falando?” (como bem explica Da Matta, em várias de suas obras). Os da camada
“de cima” (na nossa organização social) se julgam no direito (privilégio) de
humilhar e desconsiderar as leis assim como os “de baixo”. Se alguém questiona
essa estrutura, vem o corporativismo e retroalimenta a chaga arcaica. De onde
vem essa canhestra forma de organização social? Por que somos o que somos?
02. Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra (disse
Sérgio B. De Holanda, Raízes do Brasil) porque aqui se implantou uma
bestial organização social hierarquizada (desigual), que veio de outro clima e
de outras paragens, carregada de preconceitos, vícios, privilégios e agudo
parasitismo (veja Manoel Bomfim). Esse modelo de sociedade foi feito para o
desfrute de poucos (do 1% mais favorecido). Poucos eram os colonos nestas
inóspitas bandas que podiam receber um título de cavaleiro ou de fidalguia ou
de nobreza. Contra essa possibilidade de ascensão os portugueses invocavam dois
tipos de impedimentos (que não alcançavam os brancos católicos, evidentemente):
(a) o defeito de sangue (sangue infecto dos judeus, mouros,
negros, índios ou asiáticos); (b) o defeito mecânico (mãos
infectas dos que faziam trabalhos manuais ou cujos ancestrais tivessem
praticado esse tipo de trabalho). Nem mesmo os leais ao monarca podiam galgar
os privilégios e as graças da monarquia (ou seja: subir na mobilidade social),
caso apresentassem um desses defeitos, que depois foram ampliados para abarcar
os pobres, as mulheres, as crianças, os portadores de deficiência física, os
não proprietários, os não escolarizados etc.
03. Ocorre que no tempo da colônia brasileira (1500-1821) e do
Império (1822-1888) pouquíssimas pessoas não estavam contaminadas por uma das
duas máculas matrizes. Quais foram, então, as saídas para se ampliar aqui
também uma organização social dividida em classes? Ronald Raminelli (em Raízes
da impunidade) explica: a primeira foi o rei perdoar os defeitos e quebrar
a regra para conceder títulos e honrarias aos nativos guerreiros que defenderam
Portugal, sobretudo na guerra com os holandeses (é o caso de Bento Maciel
Parente, filho bastardo de um governador do Maranhão, do chefe indígena Felipe
Camarão, do negro Henrique Dias etc.); a segunda foi que aqui, apesar do
defeito de sangue ou mecânico, foram se formando novas oligarquias
(burguesias), que acumularam riquezas e se tornaram potentes com suas terras,
seus engenhos, plantações, quantidade de escravos, vendas externas, exércitos
particulares etc. Surge aqui o conceito de “nobreza da terra” (que não podia
ser excluída das camadas superiores).
04. Ao longo dos anos, como se vê, o tratamento dado às várias
camadas sociais foi se amoldando ao nosso tropicalismo (foram se
abrasileirando). A verdade, no entanto, é que nem sequer em Portugal nunca foi
cristalinamente rígida a separação das classes sociais. Lá nunca houve uma
aristocracia hermeticamente fechada (veja S. B. De Holanda). Praticamente todas
as profissões contavam com homens fidalgos - filhos-de-algo, salvo se viviam de
trabalhos mecânicos (manuais). O princípio da hierarquia,
então, entre nós, nunca foi rigoroso e inflexível; nem poderia ser diferente
porque aqui se deu uma generalizada mestiçagem (casamentos de portugueses com
índias ou com negras), embora fosse isso duramente criticado pelos
pseudo-intelectuais racistas, sendo disso Gobineau um patético e psicopático
exemplo, que previam o fim do povo brasileiro em apenas dois séculos,
justamente em virtude dessa miscigenação das raças (que afetava o crânio das
pessoas, na medida em que o crânio tinha tudo a ver com o líquido seminal).
05. As elites que foram se formando (as oligarquias
colonialistas) passaram a ser conhecidas como “nobreza da terra” e
foram ocupando os postos de destaque na administração, nos cargos militares, na
Justiça (juízes e promotores), na esfera fiscal, no controle dos recursos
públicos etc. Quando Portugal passava pelos constantes apertos econômicos, os
títulos da nobreza eram comprados pelos barões, duques, condes e marqueses.
Foram essas as primeiras oligarquias que dominaram a população nativa (poucos
brancos e muitos mestiços, índios, pretos alforriados e escravos), mandando e
desmandando, com seus caprichos, arbitrariedades e privilégios, destacando-se o
da quase absoluta impunidade pelos crimes praticados. Do ponto de vista do
controle social, a colônia foi um grande campo de concentração (subordinado aos
caprichos do mandante). Os militares sempre constituíram uma classe
privilegiada, acima das leis do rei; contrariavam as leis e eram tolerados pelo
seu poder e pelas suas armas, assim como pela capacidade de liderar tropas e
defender os interesses da monarquia. Ainda hoje contam com uma Justiça
especial, um foro especial, distinto dos demais criminosos. Outro exemplo de
privilégio é o foro especial para os altos cargos da nação assim como a prisão
especial (cautelar) para aqueles que possuem curso superior.
06. “Num ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a
lei, a desigualdade não é problema. É tradição” (R. Raminelli). No Brasil,
portanto, todos (tradicionalmente) lutam por privilégios (não por igualdades de
oportunidades ou mesmo igualdade perante a lei). O que nos compraz é o
privilégio, não a igualdade. Triste país o que está tão perto dos caprichos e
dos personalismos, dos desmandos, da ausência do império generalizado da lei,
dos privilégios, das imunidades de classe (impunidade, v. G.) e tão longe da
igualdade de oportunidades assim como da igualdade perante as leis. Temos muita
dificuldade de lidar com as normas gerais (no trânsito, por exemplo) porque (os
elitizados, os das camadas de cima) são criados em casas (e escolas) onde, desde
a mais tenra idade, se aprende (educação se aprende em casa!) que há sempre um
modo de satisfazer nossas vontades e desejos (e caprichos), mesmo quando isso
vá de encontro com as normas do bom-senso e da coletividade (Da Matta, O
que faz o brasil, Brasil?.
07. O dilema brasileiro (segue o autor citado) reside no
conflito entre a observância das leis gerais e o “jeitinho”
que se pode encontrar para burlá-las em razão das relações pessoais. Nós
não admitimos (em geral) ser tratados como a generalidade, sim, queremos sempre
o atalho, o desvio, o respeito incondicional à nossa “superioridade natural”.
O indivíduo que deve obedecer as leis gerais não é a mesma
pessoa (distinguida) que conta com relações sociais e privilégios
“naturais” (que não poderiam ser contestados). O coração do brasileiro
elitizado, hierarquicamente “superior”, balança entre esses dois polos (Da
Matta). No meio deles está a malandragem, a corrupção, o jeitinho, os
privilégios, as mordomias e, evidentemente, o “Você sabe com quem está falando?”.
Claro que a lei, com essa mediação social, fica desprestigiada, desmoralizada.
Mas ela é insensível e todos que pisam na sua santa generalidade e igualdade
(um dos mitos com os quais os operadores jurídicos normativistas trabalham)
ficam numa boa e a vida (depois do desmando, do capricho, da corrupção, do
vilipêndio, do crime impune, do jeitinho, da malandragem) volta ao seu normal (Da
Matta).
Professor
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